O Espetáculo O Defunto recebeu mais uma crítica, e dessa vez foi publicada no VI Jornal de Crítica Teatral - Diário de Classe Teatral, organizado por Maria do Socorro Calixto Marques, professora do Curso de Teatro da UFU (Universidade Federal de Uberlândia).
A crítica é escrita por Lucas Larcher, mestrando em artes na UFU e ator do Grupo Giz de Teatro.
Foto: Felipe Braccialli |
Segue a crítica na íntegra:
O
Defunto: preciso demais desabafar
por
Lucas Larcher
Cabelos desgrenhados, cadeiras de diferentes formatos e cores ,
projeção retrô, caixa de música... Abajur, cigarro, retas,
equilíbrios e desequilíbrios, corpo-voz estilizado(a) e também
quase cotidiano(a)... minutos que são longos... sobretudo, à
noite... Chapéu de pássaros, sapatos de salto, bom humor e um
pouco de desabafo. Estas são algumas das palavras, entre
tantas possíveis, que podem caracterizar e ficarem como impressões
após assistirmos ao espetáculo O Defunto.
O encontro de duas mulheres, ou
mortas-vivas, que juntas revivem as histórias que compartilharam com
o defunto Victor, é levado à cena pelo grupo Galhofas desde 2010. O
Defunto é um trabalho a partir da
peça homônima do francês René de Obaldia, datada de 1961. Com um
quê de absurdo, o texto ganha forma
através da encenação assinada por Felipe Casati, que mescla
diversas linguagens e referências, construindo uma montagem por
vezes lírica, por vezes trágica e até mesmo despretensiosa. Mas,
capaz de prender a atenção do público do início
ao fim.
Dando vida a uma obra com um motivo por vezes banal, o espetáculo é
construído como metáfora do ciclo no qual as personagens estão
presas, ou então, do qual não desejam
se libertar. A rotina da viúva Júlia, interpretada por Talita
Valarelli, e da ex-amante de Victor, Dona Garra, personagem de
Gabriela Santos, começa a ser percebida logo no início da
apresentação. Pois, já na parte externa do espaço da Trupe de
Truões (local onde o espetáculo foi apresentado como parte
integrante do projeto Casa Aberta), as regras do jogo que começa a
se desenrolar são apresentadas ao público. Dona Garra e Júlia
estão prontas para se encontrar, cada uma
trazendo consigo sua cadeira, para que
naquele determinado local possam falar da loucura e da doçura que o
amor foi capaz de despertar em ambas.
Caracterizadas já como personagens, as atrizes iniciam o espetáculo
com seus tênis do dia a dia, trocando-os
posteriormente pelos os sapatos de salto que completam a
visualidade das personagens. Nesta mescla entre personagens e
atrizes, estabelece-se um ritual, no qual pode-se começar a perceber
que, embora metamorfoseadas como
personas ficcionais, tanto Talita, quanto Gabriela,
viverão, nos quarenta e cinco minutos
de peça, um limiar entre ficção e
realidade. Ambas não falarão apenas acerca do personagem que
confere título à peça, assim como das verdadeiras atrocidades
cometidas por ele, mas também dos monstros que todos os seres
humanos encontram para servir de culpados para suas atitudes perante
à vida.
Neste sentido, o texto de Obaldia torna-se apenas um pretexto para
que as atrizes mesclem, com as questões
de suas personagens, aspectos subjetivos
de suas próprias experiências vividas. Com construções de
personagens que abusam da alternância entre estilização/teatralidade
e o quase cotidiano, vemos em cena duas figuras inegavelmente
envolvidas nas aventuras e desventuras de uma encenação que busca
surpreender o público, minuto a minuto,
pelo modo escolhido para se contar a história.
No cenário, composto por dez cadeiras
vazias e duas trazidas pelas personagens, em suas múltiplas
diferenciações, percebemos que o vazio da natureza humana ali
presente pode se tratar de uma metáfora. As cadeiras ali não
ocupadas podem estar apenas esperando que cada um de nós,
espectadores, sentemos nelas e sejamos
também Júlia ou Dona Garra. Deixando
transbordar histórias de amor, de ódio, de traição, de submissão,
de perdão... Histórias sobre nós mesmos. Ou melhor, sobre figura
de um Victor qualquer. Um Victor que não terá voz para rebater as
acusações, uma vez que jaz sob a terra.
Explorando as diversas possibilidades cênicas proporcionadas pelas
cadeiras, assim como os objetos acoplados a elas, a cenografia parece
também retratar que diversos podem ser os espaços nos quais a
história, que vemos se desenrolar à
nossa frente, pode se passar. Em
conjunto com a iluminação - de Felipe Braccialli- , as fileiras de
cadeiras bem organizadas vão, pouco a
pouco, tornando-se um emaranhado
assimétrico, no qual não conseguimos
mais lembrar em que posição cada uma das cadeiras estava no início
do espetáculo. Será isso uma aproximação com
a bagunça, com os lugares
inexatos onde estão os sentimentos, quando o homem começa a falar
deles?
No vestido de Júlia, por debaixo do predominante preto, pode-se
observar pedaços de tecidos vermelhos. Talvez apontem
para os restos do amor por Victor, que são
revelados nas ações da personagem durante o desenrolar do
espetáculo. Assim, nos figurinos das duas intérpretes, construídos
de pedaços de tecido, podemos perceber ser inegável,
e até mesmo incapaz de ser escondido, o
amor que ambas nutrem pelo então falecido.
Mesmo esfarrapadas, encardidas e remendadas, as duas dilaceradas
personagens são como seus figurinos. Ainda mantêm alguma beleza por
debaixo do aspecto cadavérico que as cobrem. Em cada passo, em cada
sentar, em cada rodopiar ou em cada pequeno gesto, Júlia e Dona
Garra demonstram suas condições por terem amado Vitor.
A imagem é de ambas em profunda
degradação.
Logo nos primeiros minutos do espetáculo, Júlia tenta fazer reviver
uma planta já morta, que está sobre uma das cadeiras do cenário. A
personagem rega, rega, rega e rega.... Em
longos segundos. No entanto, como é esperado,
a planta não adquire uma nova possibilidade de vida. Uma metáfora
da história que vemos em cena. Em um ciclo delicioso para os
espectadores, as personagens se reencontram, no mesmo horário, para
reviver lado a lado as lembranças de Victor, expressas no texto de
Obaldia. Expressas no texto de Talita, de dona Garra, de Júlia, de
Gabriela, de Felipe's... Lembranças minhas e também de qualquer
pessoa que assista a O Defunto. Lembranças
que pedem para desabafar... e, até mesmo, explodir.